Há dez anos, no dia 8 de julho de 2002, falecia Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, poeta-ícone da nordestinidade. Nascido nos cafundós da Serra de Santana, no Cariri cearense, foi privilegiado pelo bafejo das musas que dele fizeram poeta de alta lira. Homem de poucas letras, mas dotado de larga inspiração; nasceu, cresceu e viveu num microcosmo cheio de pobreza e miséria social, mas desse ambiente hostil soube tirar a seiva de uma poesia eivada de denúncias e protesto contra a incúria dos poderosos e a leniência de quantos têm a obrigação moral de debelar as injustiças sociais. Em extrema paradoxalidade metafórica, Patativa bebeu na aridez da terra seca dos sertões adustos a água que regou a fertilidade de seu verso rijo e forte; foi buscar na fragilidade das relações entre os pobres, caminheiros, romeiros e retirantes, a fortaleza de uma poesia que se fez duradoura, porque assentada na eternidade dos mais comezinhos sentimentos humanos.
Patativa foi exímio improvisador sem ser repentista nos moldes clássicos do cantador violeiro; não era cordelista nem poeta de bancada, muito menos um poeta de recorte clássico. Mas Patativa perambulou por todos esses caminhos da poesia brasileira. Construiu a literatura de cordel da melhor qualidade quando escreveu folhetos de encomenda como as “Glosas sobre o comunismo” (“Como popular versista/ provo com os versos meus/ ser inimigo de Deus/ o regime comunista/ ali não há quem assista/ um ato de adoração/ nesta lei de confusão/ criada pelo Demônio/ não existe matrimônio/ e é contra a religião!”); escreveu na forma nobre da poesia clássica, o soneto como o que transcrevemos, cujo conteúdo define severa crítica aos processos de cooptação eleitoral e logro político, ainda vigorantes entre nós nos dias hodiernos. Atente-se para o universo vocabular de um poeta que se dizia analfabeto, mas que na verdade, tinha dicção erudita:
O Peixe
Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente,
Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.
Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente,
Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.
Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a inconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.
A isca avista, ferra-a inconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.
O camponês, também, do nosso Estado,
Ante a campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.
Ante a campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.
Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte!
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte!
E vate de Assaré fez poesia matuta, em verso de linguajar caricato, posto que ele bem conhecia a norma culta da nossa língua, de modo que a dicção amatutada de muitas de suas poesias não era uma invenção, mas uma invencionice popularesca agradável aos ouvidos de uma maioria sem qualquer seletividade auditiva, desconhecedora da originalidade neste mister. Enfim, Patativa é um grande poeta porque transitou nesses gêneros poéticos com fidalguia e soube agradar a gregos e troianos, no terreno pantanoso da política, inclusive. Mas, aí é outra história que não cabe nem convém neste espaço.
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