BARROS ALVES - Patativa do Assaré, poeta da terra seca




Patativa do Assaré, pseudônimo do poeta caririense Antônio Gonçalves da Silva, cantou sua terra e seu povo como poucos o fizeram ao longo da vida. Soube apreender as dores e infortúnios da gente nordestina, das levas de sertanejos agredidos pelo destino ingrato que os fez nascerem numa terra adusta, de clima inclemente, onde o sol tanto brilha quanto queima. E o brilho deste sol iluminou a mente e o coração de um poeta nascido na roça, com pouco estudo, mas com inspiração que foi além das fronteiras do visível. E a terra crestada, o homem faminto e retirante, o gado morto, a plantação ressequida serviu de mote para que Patativa doAssaré inscrevesse em seu verso dolente e denunciador as mazelas que ao longo da história pátria aflige o nosso povo. Mazelas que não devem ser creditadas apenas aos desígnios da transcendentalidade, mas, e, sobretudo, aos agentes políticos da nação, aos representantes do povo sertanejo nos parlamentos e nos nichos de poder, onde, em vez de elaborarem políticas  públicas de caráter permanente, cavalgam pensamento apequenado, eleitoreiro, desviante do verdadeiro conceito de Política como a arte de gerir o Estado e administrar a “res publica” para o bem-estar da população.
Patativa do Assaré cantou o doloroso cenário social, político e econômico dos sertanejos qual um Camões de alta e sonorosa poesia popular, um Homero dos sertões, um Castro Alves gritando pela liberdade de homens e mulheres jungidos a um viver de exploração e miséria. Alteou sua voz através do verso insubmisso para denunciar os usos e abusos de quantos se escondem atrás do discurso da seca para se locupletar e manter o poder de grupos oligárquicos incrustados no comando dos destinos do nosso povo. Era cego, igualmente o rapsodo grego, o que informa em estrofe norteada por certo conformismo ditado pela formação religiosa: “Nasci dentro da pobreza/ e sinto prazer com isto/ por ver que fui com certeza/ colega de Jesus Cristo,/ perdi meu olho direito/ ficando mesmo imperfeito/ sem ver os belos clarões./ Mas logo me conformei/ por saber que assim fiquei/ parecido com Camões”. Este pássaro canoro era um poeta sui generis, um improvisador cuja produção poética não inscreve-se na espécie de repentistas e cantadores de viola, como também Patativa não pode ser tido como um poeta de cordel. Suas características são excepcionais, com propriedades pertinentes ao seu talento único e marcas próprias de sua formação sertaneja, criado que foi entre poetas matutos, ouvindo benditos e ladainhas e devoções cantadas em capelas e procissões dos santos da guarda do povo caririense, especialmente o Padre Cícero Romão Batista (Meu Padim), santo entronizado pelas populações sertanejas na glória dos altares sem a necessária permissão do hagiológio romano católico.
“Ai como é duro viver/ nos Estados do Nordeste/ quando o nosso Pai Celeste/ não manda a nuvem chover/ é bem triste a gente ver/ findar o mês de janeiro/ depois findar fevereiro/ e março também passar/ sem o inverno começar/ no Nordeste brasileiro”. É assim que o autor do clássico “Triste Partida”, inicia os versos do “ABC do Nordeste Flagelado”, que denunciam as agruras e a situação penosa das populações nordestinas vitimadas de vez em quando pela seca. Situação, aliás, inconcebível nos dias hodiernos, mas que, infelizmente ainda está bem presente na vida do nosso povo do sertão. Agora mesmo, depois de centenas de anos de discursos estéreis, o Nordeste ainda padece da incúria dos governantes em relação ao problema da estiagem. O carro-pipa, vergonha de qualquer governo que se preze, cheio de água salobra e poluída, ainda trilha as estradas de terra batida por onde se espargiram os sonhos do poeta Patativa do Assaré, que tanto desejou melhor futuro para a gente humilde do sertão. Na condição de poeta, Patativa fez sua parte com seu verso feito lâmina, com o fogo de sua poesia que continua na boca do povo. Cabe aos governantes agir com a responsabilidade pública que ainda desconhecemos em suas ações.



 MEU PADIM CIÇO, A SANTIDADE E A POLÍTICA

 Barros Alves*




            Sem qualquer fundamento histórico-sociológico ou mesmo teológico, há uma dificuldade enorme de determinadas pessoas em aceitar que homens e mulheres que tiveram participação na vida política e social do seu país possam ter tido uma vida de santidade. Com relação aos muçulmanos este é um preconceito visível que assoma entre algumas preeminentes lideranças cristãs, preconceito que chega às raias da  ignorância. Assim é que o diálogo interreligioso entre muçulmanos e católicos tem emperrado exatamente porque a liderança católica teima em não vê o Profeta Maomé como um dos homens escolhidos por Deus para cumprir extraordinária missão terrena. E, quer queiram os cristãos, quer não, Maomé além de estadista e guerreiro, foi santo e profeta.
Ora, quantos santos que hoje compõem o panteão hagiológico da Igreja Católica não foram também guerreiros e estadistas. Vide a vida de alguns. Paulo, o maior dos apóstolos foi homem de extrema valentia, irrequieto, enfrentou os poderosos de sua época. (“Combati o bom combate, encerrei a carreira e guardei a fé”). São Jerônimo, o excelso tradutor da Bíblia do grego para o latim, a Vulgata, não viveu a vida toda como eremita, auto-enclausurado, como se pensa. Tinha importantes relações sociais e delas usava para divulgar o Evangelho. Assim também Santo Inácio de Loyola, Santo Thomas Morus e o próprio São Francisco, que foi soldado na juventude. Mais recentemente assoma a figura de São Josemaria Escrivá de Balaguer, fundador da polêmica Prelazia chamada Opus Dei. Aliás, quase todos os santos católicos foram homens que desenvolveram ação sócio-econômica e cultural, influenciando, decisivamente, o mundo no tempo em que viveram. Tiveram virtudes e defeitos próprios dos seres humanos. Poucos são os que viveram totalmente enclausurados. Enfim, o próprio Cristo é exemplo de homem de ação, porque é, segundo a doutrina aceita por católicos e protestantes, completamente Deus e completamente homem. Teve fome, angustiou-se, chorou, teve medo (“Pai, se for do teu desejo, afasta de mim este cálice de amargura”), teve raiva (fez um azorrague e meteu a peia nos vendilhões do templo).
            Por que, então, todo este preconceito com a figura extraordinária do Padre Cícero Romão Batista, o inolvidável taumaturgo do Nordeste brasileiro, quanto a ele não merecer ocupar um lugar nos altares da Igreja Católica Apostólica Romana, pelo fato de ter-se imiscuído na política partidária de sua época?  Ora, Roma tem uma dívida com a multidão de devotos que ao longo de mais de cem anos crê piamente na santidade do homem que em vida determinou os caminhos da sua comunidade, tanto do viés político e social quanto do ponto de vista religioso, sedimentando pela coerência de suas atitudes o respeito e a obediência aos postulados emanados pela cúpula da hierarquia de sua Igreja, ainda que alguns deles perfeitamente questionáveis. A Igreja Católica, pela inegável sabedoria de seus dignitários, não negará a confirmação da santidade de “Meu Padim”, porque jamais “Meu Padim” negou obediência à sua Igreja, ainda que injustiçado por algum purpurado de visão autoritária. É uma questão de tempo. Os devotos nordestinados do “Meu Padim Ciço”, os daquém e os dalém, não tenhamos pressa, porque o tempo de Deus não é igual ao tempo dos homens e há tempo para tudo debaixo do sol, como refere Eclesiastes. Mais dia menos dia iremos à festa de canonização de um santo nordestino. Até porque, como disse anteriormente, tratar-se-á de uma confirmação de santidade, pois as populações de nossos sertões adustos já têm certeza plena de que “Meu Padim” é verdadeiramente santo e, ao pé da Trindade, intercede em face de seus lamentos e dolorosas petições.
             Os protestantes, principais críticos das canonizações levadas a termo pela Igreja Católica Apostólica Romana, também têm, de fato, os seus santos e ídolos. O que eles não fazem – e neste ponto tergiversam, o que significa  escamotear a realidade – é praticar explicitamente a veneração dessas figuras que também são respeitáveis, é bem verdade, como líderes religiosos. O primeiro deles é Martinho Lutero, o monge rebelde que se insurgiu contra os erros da Igreja Católica em determinada quadra da história humana. Foi pensador religioso de renome e político dos mais ladinos. Sobre ele pesa, inclusive, o pecado de  ter apoiado o massacre de mais de 30 mil camponeses liderados por Thomas Müntzer, também um luterano. Durante a guerra fratricida entre nobres e pobres da Alemanha, Lutero poderia ter usado seu poder junto ao Príncipe Frederico da Saxônia, seu amigo e protetor. Não o fez. Ao contrário, Lutero repudiou o levante, recomendando aos nobres que derrotassem os camponeses, exterminando-os como a “cães raivosos”.
Outro nome de grande valor histórico é o erudito João Calvino, que escreveu aos 27 anos de idade, as famosas Institutas da Religião Cristã, obra que sedimentou a reforma protestante no campo doutrinário. Calvino rebelou-se contra o Rei Francisco I, da França, foi por este perseguido, fugiu para Genebra e lá se tornou prefeito, imprimindo governo autoritário à cidade. Diz-se que Calvino nada fez para livrar da condenação à morte o seu ex-amigo Miguel de Servet, descobridor da pequena circulação do sangue. Aliás, a morte de Servet possibilitava-lhe caminho livre para a disseminação de suas idéias teológicas junto ao povo. Calvino é adorado pelos presbiterianos, que são doutrinariamente calvinistas.
Em homenagem ao “Meu Padim Ciço”, cito apenas estes dois exemplos entre os milhares que se pode oferecer. Duas faces da mesma moeda cristã. Destarte, para que não sejam acoimados de ignorantes, é necessário que os protestantes ao apontarem o dedo em riste para os católicos, estudem primeiro a sua própria história. Mas, infelizmente, como diz o vulgo, o macaco só olha o rabo da cotia.


Barros Alves é escritor e poeta. Pertence à Academia Cearense de Retórica e à Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará.

           



2012/9/18 Cristina Maria Maria <cmacouto@yahoo.com.br>

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