Sem qualquer fundamento histórico-sociológico
ou mesmo teológico, há uma dificuldade enorme de determinadas pessoas em
aceitar que homens e mulheres que tiveram participação na vida política e social
do seu país possam ter tido uma vida de santidade. Com relação aos muçulmanos
este é um preconceito visível que assoma entre algumas preeminentes lideranças
cristãs, preconceito que chega às raias da
ignorância. Assim é que o diálogo interreligioso entre muçulmanos e
católicos tem emperrado exatamente porque a liderança católica teima em não vê
o Profeta Maomé como um dos homens escolhidos por Deus para cumprir
extraordinária missão terrena. E, quer queiram os cristãos, quer não, Maomé
além de estadista e guerreiro, foi santo e profeta.
Ora, quantos santos que hoje compõem o panteão
hagiológico da Igreja Católica não foram também guerreiros e estadistas. Vide a
vida de alguns. Paulo, o maior dos apóstolos foi homem de extrema valentia,
irrequieto, enfrentou os poderosos de sua época. (“Combati o bom combate,
encerrei a carreira e guardei a fé”). São Jerônimo, o excelso tradutor da
Bíblia do grego para o latim, a Vulgata, não viveu a vida toda como eremita,
auto-enclausurado, como se pensa. Tinha importantes relações sociais e delas
usava para divulgar o Evangelho. Assim também Santo Inácio de Loyola, Santo
Thomas Morus e o próprio São Francisco, que foi soldado na juventude. Mais
recentemente assoma a figura de São Josemaria Escrivá de Balaguer, fundador da
polêmica Prelazia chamada Opus Dei. Aliás, quase todos os santos católicos
foram homens que desenvolveram ação sócio-econômica e cultural, influenciando,
decisivamente, o mundo no tempo em que viveram. Tiveram virtudes e defeitos
próprios dos seres humanos. Poucos são os que viveram totalmente enclausurados.
Enfim, o próprio Cristo é exemplo de homem de ação, porque é, segundo a
doutrina aceita por católicos e protestantes, completamente Deus e
completamente homem. Teve fome, angustiou-se, chorou, teve medo (“Pai, se for
do teu desejo, afasta de mim este cálice de amargura”), teve raiva (fez um
azorrague e meteu a peia nos vendilhões do templo).
Por que, então, todo este
preconceito com a figura extraordinária do Padre Cícero Romão Batista, o
inolvidável taumaturgo do Nordeste brasileiro, quanto a ele não merecer ocupar
um lugar nos altares da Igreja Católica Apostólica Romana, pelo fato de ter-se
imiscuído na política partidária de sua época?
Ora, Roma tem uma dívida com a multidão de devotos que ao longo de mais
de cem anos crê piamente na santidade do homem que em vida determinou os
caminhos da sua comunidade, tanto do viés político e social quanto do ponto de
vista religioso, sedimentando pela coerência de suas atitudes o respeito e a
obediência aos postulados emanados pela cúpula da hierarquia de sua Igreja,
ainda que alguns deles perfeitamente questionáveis. A Igreja Católica, pela inegável
sabedoria de seus dignitários, não negará a confirmação da santidade de “Meu
Padim”, porque jamais “Meu Padim” negou obediência à sua Igreja, ainda que
injustiçado por algum purpurado de visão autoritária. É uma questão de tempo.
Os devotos nordestinados do “Meu Padim Ciço”, os daquém e os dalém, não
tenhamos pressa, porque o tempo de Deus não é igual ao tempo dos homens e há
tempo para tudo debaixo do sol, como refere Eclesiastes. Mais dia menos dia
iremos à festa de canonização de um santo nordestino. Até porque, como disse
anteriormente, tratar-se-á de uma confirmação de santidade, pois as populações
de nossos sertões adustos já têm certeza plena de que “Meu Padim” é
verdadeiramente santo e, ao pé da Trindade, intercede em face de seus lamentos
e dolorosas petições.
Os protestantes, principais críticos das
canonizações levadas a termo pela Igreja Católica Apostólica Romana, também
têm, de fato, os seus santos e ídolos. O que eles não fazem – e neste ponto
tergiversam, o que significa escamotear
a realidade – é praticar explicitamente a veneração dessas figuras que também são
respeitáveis, é bem verdade, como líderes religiosos. O primeiro deles é
Martinho Lutero, o monge rebelde que se insurgiu contra os erros da Igreja
Católica em determinada quadra da história humana. Foi pensador religioso de
renome e político dos mais ladinos. Sobre ele pesa, inclusive, o pecado de ter apoiado o massacre de mais de 30 mil
camponeses liderados por Thomas Müntzer, também um luterano. Durante a guerra
fratricida entre nobres e pobres da Alemanha, Lutero poderia ter usado seu
poder junto ao Príncipe Frederico da Saxônia, seu amigo e protetor. Não o fez.
Ao contrário, Lutero repudiou o levante, recomendando aos nobres que
derrotassem os camponeses, exterminando-os como a “cães raivosos”.
Outro nome de grande valor histórico é o erudito João
Calvino, que escreveu aos 27 anos de idade, as famosas Institutas da Religião
Cristã, obra que sedimentou a reforma protestante no campo doutrinário. Calvino
rebelou-se contra o Rei Francisco I, da França, foi por este perseguido, fugiu
para Genebra e lá se tornou prefeito, imprimindo governo autoritário à cidade.
Diz-se que Calvino nada fez para livrar da condenação à morte o seu ex-amigo
Miguel de Servet, descobridor da pequena circulação do sangue. Aliás, a morte
de Servet possibilitava-lhe caminho livre para a disseminação de suas idéias teológicas
junto ao povo. Calvino é adorado pelos presbiterianos, que são doutrinariamente
calvinistas.
Em homenagem ao “Meu Padim Ciço”, cito apenas estes
dois exemplos entre os milhares que se pode oferecer. Duas faces da mesma moeda
cristã. Destarte, para que não sejam acoimados de ignorantes, é necessário que
os protestantes ao apontarem o dedo em riste para os católicos, estudem
primeiro a sua própria história. Mas, infelizmente, como diz o vulgo, o macaco
só olha o rabo da cotia.
Barros Alves é escritor e poeta. Pertence à Academia Cearense de
Retórica e à Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará.
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