A busca para identificar os traços característicos do ethos do nosso tempo
e, em particular, do território caririrense, trouxe à tona, nesta coletânea,
reflexões e iniciativas de pesquisa sobre vários aspectos e campos do
conhecimento, incluindo a sociologia, antropologia, história, pedagogia,
oralidade e psicologia. A inquietação desses autores se aproxima para constituir
um mosaico de histórias de mulheres, que não se mostra indiferente ao peso de
ações guiadas por sentimentos como o amor, o ato impensado da violência e o
sentido da educação por elas vivida.
Nomes como Juraci Cavalcante, Almir Leal, Patrícia Holanda, Gisafran
Jucá e Geny Lustosa, dentre outros, estão aqui reunidos, publicam artigos de
substância sociológica e histórica, na tentativa de mostrar as mais diversas
visões, recortes de tempo e espaços distintos, acerca da discriminação e brutalidade
praticada contra a mulher. Em cada capítulo, velhos temas são abordados de
forma inovadora, numa visão retrospectiva, e, ao mesmo tempo, atual, salientando
o processo econômico, social e político, que modelou a vida dessas mulheres e
ao qual elas viveram e vivem submetidas, por séculos.
Ao abrir esta coletânea, leitores e leitoras se deparam logo no começo
com a lente visionária do cineasta e a memória fotográfica do historiador,
Rosemberg Cariry, que relata e eterniza a vida de uma grande e sofrida mulher caririense
- vinda de uma classe social subjugada pela injustiça social - que modelou
criaturas de barro e, numa imitação de Deus, transformou o barro em vida. Vida a
que ela mesma deu a sua criação, emprestando–lhe voz, sentimento e história. Dona
Ciça do Barro Cru modelou a partir do seu chão, histórias de personagens tão
vivas e tão reais, quanto a sua fé na vida, no trabalho e na proteção
do seu Padim Ciço.
O que aprendemos ao ouvir a oralidade popular é que do barro nasceu o
homem, mas aqui no Cariri cearense essa ordem, por vezes, pode ter sido
invertida, pois, do puro barro nasceu, viveu e sobreviveu a mulher. Sendo ela feita de uma argila de cor rubra
feito sangue, que lhes corre nas veias e na terra, pois quando mortas, esse
sangue se mistura à terra escura, transbordante de uma outra seiva feita de ódio,
inveja, vingança e amor; sentimentos tão extremos, testados, quantas vezes, até
as últimas consequências, por aqueles que se dizem seus protetores e
provedores, mas que não suportam a fortaleza, a coragem, a valentia e a ousadia
com que essas mulheres veem e enfrentam a vida.
Como parte da absurda história brasileira, o sul do Ceará não foi
diferente. Por essas bandas, o patriarcado
reinava único e absoluto, desde o começo da colonização se arrastando por todo o
século XIX, esses senhores eram donos das terras, dos filhos, da mulher e dos
escravos. Embora pareça contraditório, há
notícia de que foi nessas mesmas terras que surgiram mulheres que, com muita
garra, determinação e coragem, assumiram posições e atitudes,
até então, consideradas exclusivamente do sexo masculino.
Foram elas, como todas as outras: mães, esposas, devotas e dedicadas,
mas, várias delas nunca deixaram ou permitiram ser menosprezadas ou subjugadas
por quem quer que fosse. Houve aquelas
que assumiram, assim como eles, a direção das suas vidas e das dos outros,
impondo sua vontade e determinando seu destino, fosse através da negociação, do
acordo ou, quando nada conseguiam, era mesmo com a força e o poder
do bacamarte, da violência e da morte.
Por aqui, reinaram mulheres, reais e lendárias, tidas como revolucionárias
a exemplo de Dona Barbara de Alencar, companheira de luta como Dona Ana Triste;
a destemida Dona Antônia Maria do Espírito Santo; a poderosa Dona Fideralina
Augusto Lima, e a valente Dona Marica Macedo. Por meio de suas ações, elas mudaram
conceitos, rompendo barreiras e vencendo preconceitos. Administraram seus
feudos, criaram escravos, foram esposas, fizeram filhos, mas trataram de fazer
valer suas vontades. Mostrando a força e a determinação do
substantivo feminino, quando
desgarrado da rédea curta e tirânica dos patriarcas.
A composição do cenário nordestino naquele século XIX era de estruturas
arcaicas, formadas por três grandes protagonismos que mantinham e detinham o
poder, sob a força do bacamarte, do punhal e do rosário: os coronéis, os
cangaceiros e os beatos. Nesse efervescente conflito, muitas mulheres se
atreveram a ingressar e desempenhar papéis fundamentais para a manutenção da
ordem e da
estabilidade do poder.
Depois da leitura dos artigos desta coletânea, se percebe uma recolha
histórica do papel relevante, e porque não, determinante da mulher, no decorrer
dos séculos, por meio de relatos e acontecimentos diversos, que me deixaram
perceber o quanto a mulher está ligada às importantes decisões em todas as
épocas, e em todas as esferas da sociedade. Algumas, ou, a maioria delas, se
fingindo submissas, mas, sabiamente, sendo capazes de influenciar os seus homens
(quer fossem maridos, filhos, genros, irmãos ou pais) nas tomadas de decisões,
quando não as fazem diretamente.
No caso do Cariry, destaco a preocupação e o zelo das mulheres em educar,
escolarizar e formar seus filhos, e dos outros, quando professoras. Nesse
sentido, elas foram de fundamental importância para o
desenvolvimento da região.
Isto porque, cabia a elas a educação doméstica e estavam também no
acompanhamento dos estudos em escolas e colégios, na luta para encaminhar seus
filhos para estudar e chegar às mais longínquas faculdades. Segundo Sérgio
Buarque de Holanda: o bacharelismo era uma forma de manifestação de poder, no
espaço organizacional brasileiro, sob a hegemonia da aristocracia rural do
século XIX. E todo o poder por aqui exercido, como todos sabem, foi à custa do
latifúndio, das armas, das patentes, mas, sobretudo, do bacharelismo.
No interior dessa elite latifundiária, tais mulheres que pegavam em
armas, lutavam e defendiam seus interesses, seus feudos e seus ideais eram as
mesmas capazes de amar e proteger seus filhos. Servindo a elas, estavam às
mulheres da outra ponta da cadeia social, que embalavam a rede, trabalhavam na
colheita, pisavam o milho, torravam café, eram fiéis aos seus senhores, se
cobriam de luto e se recolhiam, quando um ente querido falecia. O que queria dizer recolhimento sim, covardia
não. Por todo lado, estavam às mulheres a prover a sociedade de ações
socializadoras, subjugadas ou indignadas; de forma clara ou às escondidas.
A escolha do tema deste Congresso, “Histórias
de Mulheres: Amor, violência e educação”, foi, sobretudo, um ato de coragem,
atualidade e ousadia, pois, embora pareça ser já muito debatido, a questão
feminina é ainda um preconceito, um deboche e um entrave na sociedade atual. Se
tudo isso não fosse verdade, não haveria tanta violência contra a mulher, nunca
se discutiu tanto o direito e a liberdade feminina, e nunca a mulher sofreu
tanta violência, tão abertamente, como agora.
Precisamos analisar com mais cuidado e verificar onde está a raiz do
problema. Será mesmo este um problema da mulher? Com muita luta, sabedoria,
sofrimento, violência, sangue e morte chegamos até aqui. Vale salientar que, nós - guerreiras
integrantes de um amplo contingente feminino - nunca desistimos; perdemos
algumas batalhas, é verdade, o que nos tem dado força para continuar na luta,
afinal, somos todas descendentes das tribos guerreiras que dessas terras
emergiram. Somos Kariris, Calabaças,
Karius, Icozinhos, Jucás, e de muitas outras etnias.
Este livro que me coube à honra de apresentar parece-me ser um grande
novelo literário, desatado com muita competência, delicadeza e determinação, por
Juraci Cavalcante, Patrícia Holanda e Zuleide Fernandes; marcado a ferro por
Pedro Morato, Maria Helena Bastos e Sádia de Castro; alinhavado
com muito capricho por Clara Castilho, Laura Alves, Geny Lustosa e Gisafran
Jucá; costurado com a maestria de Maria do Carmo Forti, Anamaria Freitas,
Francisca dos Santos, Cláudia Granjeiro e Quilho Saiuá, arrematado por
Oderlânia Leite, Iara de Araújo, Regina Leitão, Tânia Lopes, Edite Marques, e o
acabamento final ficou por conta de Marlúcia Paiva, Edvar Araújo, Pádua Lopes, Diomar Mota, Mário
Júnior, Almir Leal, Gualberto Quirino, Roberto Marques e Josier Silva. Temos aqui um grande
atelier editorial, repleto de pesquisadores sociais preocupados, no fundo, com
o destino do mundo, da mulher e da educação.
O livro que agora está
sendo lançado servirá por certo de base para novas discussões e debates sobre a
mulher, sob variados aspectos, novas perspectivas e novas fontes a serem consultadas.
Esta edição é uma das muitas que já foram lançadas com temas diversos. Espero
que a partir deste conjunto possamos parar para pensar, com mais vagar e
atenção, e desvendar o mistério de tanto ódio e tanta violência contra a mulher,
e por que é a mulher o seu alvo preferencial. E digo mais, quem sabe a chave
desse mistério não esteja guardada nas páginas desta obra?
Peço agora a todos
vocês uma salva de palmas a todas as mulheres que morreram na luta pela nossa
liberdade.
Boa
leitura e Muito Obrigada!
Crato, 04 de junho de 2015.
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